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Morte súbita e desporto. Devemos ter receio?

Fizemos esta pergunta a Jordi Trias de Bes, um Cardiologista espanhol especialista nesta matéria.

Jordi Trias de Bes

Morte súbita e desporto
Morte súbita e desporto

Milhões de jovens praticam desporto seguindo o sábio ditado popular "mente sã em corpo são". Os desportistas de alta competição são considerados hoje em dia como uma parte especial da sociedade devido ao seu estilo de vida único e à perceção de que representam a saúde no seu expoente máximo e um certo tipo de invulnerabilidade, sendo capazes de prestações admiráveis e às vezes extraordinárias. Então, como é que é possível que jovens desportistas que treinam regularmente, tanto a nível profissional como amador, possam padecer de doenças cardíacas potencialmente letais ou ser sucetíveis de morte súbida durante a prática desportiva? Parece um contrassenso.

Estas calamidades continuam a acontecer, têm um efeito devastador na família do desportista, nos seus colegas e amigos, bem como na comunidade em geral e são, em regra, amplamente difundidas pelos meios de comunicação social criando um grande impacto em todos aqueles que estão relacionados, bem como na comunidade médica.

E a questão que surge sempre após algo deste género é se esse atleta poderia ter sido identificado num check-up médico cardiovascular e se essa morte poderia ter sido evitada. O primeiro caso de morte súbita na história foi do soldado grego Pheidippides (490 AC) que correu desde Marathon até Atenas para anunciar a vitória militar sobre os persas.

INCIDÊNCIAS E CAUSAS

Medidas de diagnóstico recomendadas e consequências do diagnóstico

Em primeiro lugar, chamamos morte súbida num desportista àquela que ocorre de forma inesperada durante a prática desportiva, quer em treino quer em competição, durante a primeira hora desde a perda de consciência, quer seja em atletas amadores ou profissionais, com doença cardíaca conhecida ou não. Devido ao seu maior impacto social iremos centrar-nos na morte súbida dos desportistas jovens (até aos 35 anos de idade). A morte súbida de indivíduos com idade superior à mencionada costuma ocorrer devido a uma patologia totalmente distinta e conhecida como enfarte agudo do miocárdio. Na verdade, a incidência real de morte súbida em jovens desportistas durante eventos desportivos é incerta, mas com os dados atuais, é considerada baixa.

Foi feito um estudo nos Estados Unidos da América onde se analisou uma série de desportistas do ensino secundário e universitário, e foi detetada uma morte súbida por 100.000 participantes/ano. Em Veneto (Itália), a incidência chega a 3 por 100.000 participantes/ano em desportistas de 35 anos ou menos. De facto, este estudo italiano demonstrou que a prática desportiva de competição multiplica por 2,5 o risco de morte súbita em adolescentes e adultos jovens comparando com o grupo de população jovem que não pratica habitualmente desporto. Mas esses jovens desportistas que morreram subitamente padeciam de doenças cardíacas que até esse momento não davam qualquer sinal como miocardiopatias (doenças do músculo cardíaco), anomalias congénitas das artérias coronárias, etc. Portanto, não se deve considerar a atividade desportiva per se uma causa de morte, mas sim algo que pode desencadear arritmias cardíacas letais em corações previamente doentes.

Também sabemos que a morte súbida de desportistas é muito mais frequente em homens do que em mulheres numa proporção de 10:1, sugerindo que o sexo masculino é, em si mesmo, um factor de risco. Quanto às causas habituais da morte súbita nos desportistas, consideramos que a mais comum é a doença coronária aterosclerótica (enfarte do miocárdio) nos falecidos maiores de 35 anos, enquanto nos atletas mais jovens existe um leque maior de doenças cardiovasculares, na sua maioria congénitas ou de caráter hereditário.

DIFERENÇA ENTRE PAÍSES

Nos E.U.A., várias autópsias realizadas a desportistas falecidos por morte súbita assinalaram a miocardiopatia hipertrófica como a causa mais comum explicando mais de um terço dos falecimentos de desportistas nesse país. Esta doença, de caráter hereditário, consiste num anormal crescimento muscular (hipertrofia) de uma parte do coração que pode determinar a obstrução da saída do sangue até à aorta, insuficiência da válvula mitral e arritmias letais. Afeta 1 em cada 500 pessoas da população total, mas só uma pequena percentagem tem manifestações clínicas. O segundo lugar é ocupado por diversas anomalias congénitas das artérias coronárias (origem anómala das mesmas), seguindo de displasia arritmogénica do ventrículo direito, miocardiopatia dilatada, contusão toráxica não penetrante, síndrome de Wolff-Parkison-White, etc. Em todas estas doenças, a morte ocorre ao ser desencadeada uma arritmia letal (fibrilação ventricular) e praticamente acontece sempre durante a prática desportiva. Raramente acontece nos casos de rutura da artéria aorta ou por doenças não relacionadas com o coração como a asma ou a rutura de um aneurisma cerebral.

Todavia, em outras zonas geográficas, como o norte de Itália, a causa mais frequente de morte súbita dos desportistas não é a miocardiopatia hipertrófica, mas sim a displasia arritmogénica do ventrículo direito (aliás, tal como em Espanha). Para além dos fatores genéticos implicados, a explicação destas diferenças baseia-se no sistema de exames médicos obrigatórios vigente por lei em Itália e que obriga todos os adolescentes que pretendam praticar um desporto individual ou coletivo a fazer exames específicos, sendo esse motivo a descoberta da maior parte das miocardiopatias hipertróficas antes que seja tarde de mais.

Nos EUA, o basquetebol e o futebol americano são as modalidades com mais casos de morte súbita, contudo na Europa o futebol, o basquetebol, a natação e o ciclismo são os que têm mais casos. Em Espanha, por exemplo, o ciclismo foi responsável por 34,4% dos falecimentos entre os 11 e os 65 anos (média de 36 anos) e 24% dos falecimentos em menores de 35. Os enfartes foram a principal causa associada ao ciclismo. E aqui ficou evidente que este dado é preocupante, sobretudo devido ao número crescente de praticantes amadores, pois uma boa parte não faz exames regulares, incluindo a nível cardíaco. Nos estudos realizados os especialistas tentaram perceber qual era o desporto com maior risco cardiovascular e morte súbita. Os exercícios dinâmicos (como o ciclismo) envolvem um grande consumo de oxigénio e uma sobrecarga do volume, enquanto os exercícios estáticos (ginásio) pressupõem um aumento da pressão arterial e a sobrecarga da pressão do coração. A maioria dos desportos associados à morte súbita têm um componente dinâmico alto e um componente estático moderado ou alto. O ciclismo, o triatlo, o boxe e o remo reunem os dois componentes.

A SOLUÇÃO

O diagnóstico precoce é a solução para reduzir a incidência de morte súbita nos desportistas já que, infelizmente, os familiares só se apercebem que o seu ente querido padecia de uma doença coronária depois de receberem o resultado da autópsia. A maioria dos desportistas menores de 35 anos que morrem subitamente não têm antecedentes familiares de eventos cardíacos fatais, nem sequer apresentaram sintomas prévios de doença cardíaca antes da sua morte. Portanto, um conjunto de exames médicos (incluindo análises específicas e exames cardíacos detalhados, como um eletrocardiograma) podem ajudar a descobrir alguma doença associada e iniciar o tratamento, ajustando o treino às recomendações do médico especialista. Aliás, em Portugal era regra geral a prescrição de um atestado médico sempre que alguém pretendia iniciar a sua prática desportiva, tendo essa boa prática mudado, deixando à consciência de cada um a decisão de fazer - ou não - um check up completo.

O MELHOR CONSELHO

Existem critérios médicos específicos que classificam um desportista logo após ser diagnosticado com uma doença cardíaca. Por vezes existem diferenças subtis entre o chamado "coração de atleta" (mudanças fisiológicas no tamanho do coração presentes em muitos desportistas) e uma verdadeira patologia hipertrófica, por isso é importante haver um bom diagnóstico, que seja o mais conclusivo posssível e que não crie no próprio atleta - e na família - uma angústia que em nada beneficia a sua vida futura. Mas isso é tema para outro artigo futuro. Entretanto, o melhor conselho que podemos dar tanto aos desportistas em geral, como às próprias federações, ao Estado e aos treinadores, é a necessidade de realização de exames médicos específicos. Este tipo de mortes pode ser - na sua grande maioria - evitada e no caso do ciclismo, ainda mais, devido à carga envolvida.

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