Embora não seja novidade no mundo da alta competição, o treino em altitude ganhou um novo vigor recentemente. Se até há bem pouco tempo praticamente só os ciclistas profissionais faziam estágios em altitude várias vezes ao longo do ano para melhorar a sua forma, hoje em dia há cada vez mais ciclistas amadores ou semi-profissionais a adotar esta metodologia, passando longas temporadas em altitude a preparar as provas mais importantes do ano.
David Valero faz regularmente estágios em altitude na Sierra Nevada
E qual é o motivo destes estágios em altitude? Basicamente permite a estes atletas estarem expostos a ar com menos oxigénio, o que provoca uma situação de hipóxia no organismo. Esta hipóxia consiste numa insuficiência de oxigénio no sangue que, numa primeira fase, se traduz num menor rendimento em esforços que dependem do metabolismo aeróbico e de componente cardiovascular quando estamos em altitude. De facto, é habitual sentirmos falta de ar e fadiga quando tentamos pedalar em zonas de alta montanha.
EFEITO: O NOSSO ORGANISMO LUTA CONTRA A HIPÓXIA
Esta falta de oxigénio no sangue provoca algumas respostas fisiológicas que pretendem compensar essa deficiência, também conhecida por hipóxia. A mais importante é uma maior atividade da glândula suprarrenal que, ao detetar menos oxigénio no sangue, aumenta a secreção de uma hormona chamada eritropoietina cuja função é estimular a criação de glóbulos vermelhos, que estão encarregues de transportar o oxigénio através do nosso sistema circulatório.
A exposição à altitude provoca um aumento dos nossos glóbulos vermelhos
Este aumento na produção de glóbulos vermelhos facilita, por um lado, a aclimatação à altitude, aumentando significativamente o rendimento em alta montanha, embora nunca nos mesmos valores do nível do mar. Passar períodos mais prolongados em altitude é a melhor decisão se queremos aclimatar e sofrer o menos possível os efeitos da hipóxia. No entanto, os estágios em altitude e a resposta do nosso organismo (criação de eritropoietina) também traz vantagens em termos de rendimento ao nível do mar, graças a uma maior concentração de glóbulos vermelhos, o que faz com que o nosso desempenho seja superior ao que teríamos se não tivéssemos treinado em altitude.
COMO ESTAGIAR EM ALTITUDE
Convém clarificar que estes benefícios que podem surgir quando estagiamos em altitude não surgem da noite para o dia. Há inúmeros artigos e estudos que analisarm as consequências dos estágios em altitude e todos eles referem que existe um período mínimo de exposição em altitude para que realmente se notem os seus efeitos. É preciso estar pelo menos 20 dias para haver mudanças fisiológicas que nos permitam adaptar à altitude e aumentar o rendimento quando regressarmos ao nível do mar.
Os estudos também revelam que, após um estágio em altitude, são necessários alguns dias de adaptação quando voltamos ao nível do mar, e só depois conseguiremos sentir esses benefícios. Este tempo de adaptação é crucial em termos de programação para as provas mais importantes. Isto também significa que se formos para uma prova que se realiza em altitude com somente três ou quatro dias de antecedência, fisiologicamente não estaremos preparados, dado que não passámos o tempo suficiente para o corpo se aclimatar.
O OUTRO LADO DA MOEDA: O STRESS FISIOLÓGICO
Apesar de tudo, o treino em altitude não traz só benefícios. A hipóxia implica um grande stress para o nosso organismo. Uma redução ou restrição do fornecimento de oxigénio aos nossos tecidos implica uma maior contribuição do metabolimso anaeróbico, portanto mais produção de lactato, mais utilização de glicogénio e, obviamente, um surgimento mais acelerado da fadiga.
ALTITUDE (metros acima do nível do mar) |
ACLIMATADOS (percentagem de potência) |
NÃO ACLIMATADOS (percentagem de potência) |
0 m | 100% | 100% |
610 m | 98,3% | 97% |
1.219 m | 95,9% | 93,2% |
1.829 m | 92,70% | 88,90% |
2.418 m | 88,60% | 84% |
3.048 m | 83,70% | 79,3% |
Este maior stress que sofremos quando estamos em altitude deve ser tido em conta no treino de alta montanha. Ou seja, temos de ter a noção de que a nossa capacidade física será menor, que precisaremos de maiores períodos de recuperação e descanso e que o ritmo de andamento terá de ser, obviamente, menor do que o que adotamos ao nível do mar.
Também devemos ter a noção de que temos de planificar os nossos treinos de modo distinto quando treinamos em altitude. A nossa capacide de gerar potência diminui quanto maior for a altitude, que à mesma intensidade acumulamos mais lactato, consumimos mais glicogénio e, como referimos noutro parágrafo, os períodos de recuperação entre treinos exigentes têm de ser mais prolongados.
Todas estas circunstâncias fazem com que a altitude não deva ser levada com ligeireza. Além disso, há outro ponto extremamente importante que temos de considerar: nem todos reagem da mesma forma à altitude. Alguns são mais afetados do que outros e em parte depende de fatores fisiológicos.
DE QUE FORMA SOMOS AFETADOS QUANDO TREINAMOS EM ALTITUDE?
Existem vários estudos que demonstram que perdemos rendimento quando estamos a treinar em altitude e que quanta maior for a altitude, maior será a perda. Por isso, devemos ter isto em conta quando planeamos estagiar, de modo a evitar um burnout. Acima de tudo, temos de ter em conta que não podemos treinar à mesma intensidade que treinaríamos ao nível do mar. E mesmo que a intenção seja pura e simplesmente fazer uma viagem de bikepacking, o efeito será o mesmo.
O nosso rendimento pode descrescer a partir dos 700 metros de altitude.
CONSELHOS PARA PROGREDIR COM BASE NO TREINO EM ALTITUDE
Se nunca treinaste em altitude, ou tens pouca experiência nesta matéria, é primordial que sigas estes conselhos:
- Se queres conseguir benefícios e aproveitá-los ao máximo quando regressares ao nivel do mar, passa pelo menos 20 dias em altitude.
- A exposição à altitude parece ter mais efeitos no rendimento do que o treino, por isso podes dormir em altitude e treinar mais abaixo. Assim, poderás manter os teus níveis ou intensidades habituais.
- Se fores treinar em altitude, dedica os primeiros 5-6 dias a adotar um ritmo suave, depois passa a moderado. Tenta que as intensidades não ultrapassem 70-75% do teu FTP ou do teu limiar anaeróbico.
- Não te esqueças da diminuição da potência em altitude, portanto não tentes treinar à mesma intensidade.
- Em altitude há um maior consumo de glicógeno durante o exercício, por isso deves comer e repôr os hidratos de carbono com maior frequência e em maior quantidade do que ao nível do mar.
- Devido ao maior stress, a frequência cardíaca costuma ser mais alta em altitudes moderadas.
- Quando voltares ao nível do mar para competir, reserva um período de 4 a 5 dias de aclimatação, adotando um ritmo suave. Vais notar um pico de forma nesses dias, mas não imediatamente após vires do estágio em altitude.
CONSELHOS GERAIS PARA UM DIA DE TREINO EM ALTITUDE
Se estás a planear fazer um estágio em altitude ou eventualmente uma viagem de bikepacking que percorra algumas montanhas, segue estas recomendações:
- Não menosprezes os efeitos da altitude. O teu ritmo será claramente mais baixo do que aquele que consegues manter ao nível do mar. Por isso, planeia tendo em conta esse pormenor e por precaução não sejas muito otimista quanto ao número de quilómetros que conseguirás completar por dia.
- Come e bebe mais do que costumas quando andas de bicicleta. Embora o nosso organismo não demonstre, o consumo energético é muito maior em altitude.
- Se tens planeada uma rota numa zona com uma altitude elevada, por exemplo, 4.000 metros acima do nível do mar, sugerimos que desenhes um percurso que suba progressivamente, passando por zonas de altitude intermédia. Assim, não será um choque tão grande para o teu organismo.
- Reserva alguns dias para descansar ou introduz alguns dias mais simples com pouca quilometragem e pouco desnível. O teu corpo vai agradecer.
- Mede a tua frequência cardíaca, pelo menos, para controlar o nível de esforço. Se não superares 75% da tua frequência cardíaca máxima estarás a ajudar o teu organismo a não chegar ao máximo que consegue suportar e a manter energia para o resto do dia.