A fase de transição é o período que vai entre a última competição ou treino/volta exigente da temporada até voltarmos a treinar com o objetivo de melhorar a nossa forma para os objetivos do ano seguinte.
Obviamente, a fase de transição de cada pessoa deve ser individual dado que cada um tem características únicas. Desde aqueles que treinam praticamente todos os dias da semana, até aos que só pedalam ao fim de semana, mas querem estar em forma para poder acompanhar os seus amigos.
O espectro entre o ansiolítico competitivo e obsessivo compulsivo do treino e o ciclista relaxado de fim de semana sem ambições desportivas é muito amplo. E pelo meio há inúmeros perfis cuja única característica em comum é ter uma bicicleta que usam com frequência. Como é óbvio, a forma de cada um enfrentar o fim da temporada é muito diferente. Neste artigo pretendemos dar alguns conselhos gerais, mas facilmente individualizáveis para saber o que esperar nesta fase de transição e poder decidir como planificá-la.
O MEDO DE PERDER A FORMA
O treino são basicamente estímulos que damos ao corpo para forçar a adaptação. Com a passagem dos treinos e a acumulação dessas adaptações, vamos melhorando a forma e alcançando um desempenho melhor. Infelizmente, essas adaptações são reversíveis. Aliás, desaparecem mais rápido e com maior facilidade do que surgem. A fisiologia e o desporto têm esta parte cruel.
Mas nunca nos devemos esquecer que, em regra, quando mais tempo tivermos um tipo de adaptação, mais rapidamente voltará a acontecer quando voltarmos a treinar. Portanto, o esforço passado não cairá em saco roto. Os estudos demonstram que se deve fazer uma paragem total no treino. Nestes casos, podemos falar de 4 semanas como o período de tempo em que perderíamos todas ou a maioria das adaptações prévias e voltaríamos a um nível de forma similar ao que tínhamos quando treinávamos
Há algumas adaptações que desaparecem muito rapidamente, como por exemplo, o volume sanguíneo, que em somente 2 ou 3 dias de repouso diminui entre 5 e 12%. Os depósitos de glicogénio também se esvaziam rapidamente, até 39% numa semana de repouso. Depois de duas semanas de paragem a frequência cardíaca máxima poderá aumentar entre 5 e 10%, e a de repouso pode subir até 7%.
O Limiar do Lactato piora entre 4 e 17% após três semanas de paragem e o VO2max declina progressivamente até estabilizar no nível de base às 4 ou 5 semanas de repouso. Ao fim de três semanas de paragem é notável a perda de força máxima e a potência máxima baixa bastante às duas semanas. Tendo em conta todos estes dados e a nossa experiência como treinadores e ciclistas, concluímos que num mês de repouso perdemos aquilo que demorámos meses de treino a ganhar.
É importante salientar que o nível de base a que voltamos após essas quatro semanas de paragem é muito individual, dependendo sobretudo da genética de cada um e da experiência prévia em termos de treino. Tudo aquilo que fizemos ao longo da nossa vida em termos de ciclismo ou ginásio condicionará esse nível de base. E deves ter em conta que os anos mais recentes são os que mais influenciam esse nível de forma pós paragem.
Dentro desse somatório daquilo que fizeste ao longo da tua vida, é relevante relembrar que, quando começares a pensar na próxima temporada, voltarás a ganhar mais rapidamente as adaptações que perdeste do que aquelas que nunca atingiste. Por exemplo: se conseguiste fazer 20´ a 300 W este ano, no ano seguinte será mais fácil alcançar esse mesmo valor. E se conseguiste estar a esse nível durante grande parte do ano, será ainda mais rápido e simples. No entanto, para alcançar os 310 W, devemos treinar mais e melhor.
PLANIFICAR A TRANSIÇÃO
É do senso comum que devemos parar no final do ano para descansar, recuperar as forças físicas e anímicas e depois voltar à carga para a temporada seguinte. Este ciclo, ou seja, treinar e descansar, deve ser seguido constantemente. E se perguntas por que motivo devemos parar mais tempo no final do ano, a resposta é simples e tem a ver com o metabolismo e com o cansaço acumulado.
Há quem queira parar menos tempo para não perder a forma, por exemplo uma semana. No entanto, como certamente já te aconteceu, chega um momento em que o corpo precisa de um repouso mais prolongado. Em todo o caso, salientamos que cada caso é um caso.
Cada um deve ponderar a parte psicológica. Perceber o que o motiva, o que o preenche, o que o condiciona no dia a dia. Há ciclistas que poderiam estar o dia todo a pedalar e seriam felizes, enquanto outros ficam fartos após uma manhã inteira a dar aos pedais. Há ainda quem goste de pedalar, mas está em constante stress, devido ao medo de ser atropelado. Há também quem só fique motivado se tiver objetivos concretos, como percorrer 300 km num só dia. Devemos escutar aquilo que a nossa mente nos diz e perceber se nos pede um repouso para renovar a motivação ou somente uma pequena pausa. E há também quem prefira continuar a pedalar, testando ao máximo os seus limites físicos e psicológicos.
Por isso, o nosso conselho no final da temporada é que sigas o que a tua cabeça te diz, sem estares obcecado com programas de treino ou conselhos standard sobre períodos ou datas. Se não te apetece ir pedalar, fica em casa, é um sinal que o corpo te está a dar. Se estiveres dois dias seguidos em casa e o corpo pedir para sair, pega na bicicleta a aproveita. O mais importante nesta fase é evitar sacrifícios, treinos com séries, stress e saber aproveitar.
OUTRAS ATIVIDADES DESPORTIVAS
Quanto ao aspeto físico, a adaptação tem um limite que em cada pessoa é diferente, embora exista um aspeto que é comum a todas elas: quanto mais tempo mantivermos essa adaptação ao limite, precisaremos de mais repouso. E se não repousarmos devidamente, podemos chegar ao colapso, quer na forma do síndrome de excesso de treino, quer em termos de estagnação ou redução do nível de forma. Como é óbvio, também não devemos exceder o período de repouso.
Alguns estudos demonstraram que os atletas que conservam um nível de forma mais elevado durante a transição de uma temporada são os que conseguem melhorar os seus despenhos no ano seguinte. Vimos isto várias vezes enquanto treinadores de ciclismo. Reduzir o tempo de baixo nível de forma entre uma temporada e a seguinte ajuda a melhorar os resultados. Por isso é que não é fácil avaliar qual é o tempo ideal de recuperação entre a fase de transição. A regra deveria ser: o tempo suficiente para recuperar a capacidade de adaptação, mas o mínimo possível para evitar a perda total das adaptações alcançadas.
Ou seja, o ideal seria fazer uma primeira fase progressiva de adaptação, sem parar bruscamente, e assim não perder fodas as adaptações, somente algumas, ajudando-nos a manter um certo nível de forma. Esta perda progressiva ajuda a recuperar mentalmente. Esta fase pode durar entre 2 a 4 semanas. O objetivo seria tentar manter uma frequência de treino similar, excepto no caso daqueles que treinam seis vezes por semana, devendo baixar para cinco treinos. O volume de cada trreino deveria ser reduzido cerca de 30 a 40% e pelo menos um dos treinos deve ser intenso. A intensidade não deve ser à base de séries, deve ser baseada pela perceção de esforço e em sessões livres.
Depois desta fase (perder a forma) entraríamos na fase de transição, que incluiría o descanso total, se fosse necessário, junto com atividades desportivas diferentes, mas que nos ajudem a travar a perda de adaptação cardiovascular. Obviamente podemos pedalar um dia ou outro, mas de forma lúdica, com a BTT ou bicicleta de gravel, para mudar um pouco o chip.
NIVEL MÁXIMO DE ADAPTAÇÃO
Para planificar esta fase devemos ter em conta os ciclistas mais idosos e aqueles que têm um nível de forma mais reduzido, pois tendem a perder a forma mais rápido. Por isso, nestes casos desaconselhamos um período de repouso total muito amplo. Aliás, se durante o ano não treinaste muito (menos de 10.000 km) o melhor é evitar períodos de repouso.
Se durante o ano organizaste bem os treinos e respeitaste o período de descanso e as semanas de recuperação, o corpo não precisa de períodos extra de recuperação. Pelo contrário, esses períodos podem prejudicar o progresso na temporada seguinte, dado não haver estímulos máximos, portanto não terá alcançado o seu nível máximo de adaptação.
Para alcançar o objetivo na temporada seguinte, devemos aproveitar tudo aquilo que conseguimos na presente época. Se tivermos de começar do zero iremos demorar a recuperar esse nível e se não treinarmos substancialmente mais, será muito complicado melhorar esse nível. Isto não acontece em ciclistas com um nível mais elevado e que treinam mais. Com volumes que excedem as 600 horas ou os 15.000 km por ano, é mais provável que já tenham chegado a um nível máximo de adaptação para esta temporada, e seja necessário recuperar esse potencial para a temporada seguinte.
É neste perfil de ciclistas (ou seja, os de nível elevado que treinam muito) que em regra poderá ser necessário fazer uma pausa total de uma ou duas semanas. E inclusive nestes casos até recomendamos mais tempo. Quando for possível reiniciar a atividade física, deve ser feita a um nível mínimo. Isto pode feito com atividades complementares ou diferentes, embora não recomendemos ficar muito tempo sem pedalar. Quanto aos que estão no meio, ou seja, aqueles que estão entre estes dois extremos, sugerimos escutar o corpo e aquilo que ele nos diz.
Como resumo, devemos ficar com a ideia de que quanto menos forma e quanto menos treino, menos tempo deveremos ficar sem treinar. Todos aqueles que não treinem mais de 4 dias por semana não precisam de grandes períodos de transição. A cabeça e a vontade devem decidir o que fazer nesta fase e qual a duração. Quanto aos ciclistas que treinam regularmente e durante muitas horas, com um calendário de provas extenso, é necessário um pequeno descanso total e uma fase de transição um pouco mais extensa. Mas quando for possível, devem voltar a praticar alguma atividade física, mesmo que não seja ciclismo.