Já não é a primeira vez que abordamos este tema, mas desta vez o cenário mudou, dado que o ciclismo feminino atingiu um nível de profissionalismo elevado e há cada vez mais praticantes do sexo feminino tanto nos escalões amadores como no segmento profissional.
Ainda por cima, este tema da maternidade está a deixar de ser tabu no pelotão, convertendo-se numa circunstância banal. Campeãs do mundo como Lizzie Deignan e Ellen van Dijk são exemplos dos benefícios do ciclismo durante a gravidez e, sobretudo, provam que dar à luz não significa colocar um ponto final na carreira desportiva.
Apesar de a gravidez no desporto de elite ainda ser literalmente uma exceção à regra, os exemplos conhecidos demonstram que após a gravidez é possível retomar a alta competição passados poucos meses e ainda por cima com resultados incríveis, como mostraremos neste artigo.
MUDANÇA DE PARADIGMA
Até há poucos anos, as ciclistas tinham de escolher entre a competição e a maternidade. Não havia ponto intermédio. Uma decisão difícil, visceral... Apesar de não ser do conhecimento geral, algumas ciclistas sobredotadas, com potencial para serem das melhores a nível internacional, abdicaram da modalidade quando foram confrontadas pelas suas equipas se estavam dispostas a abdicar da maternidade para singrar no ciclismo profissional.
Este tema tabu não é novo, mas tem sido ofuscado quer pelos dirigentes da modalidade, quer pelas próprias ciclistas, que demoraram tempo a defender os seus direitos. O receio de perderem o contrato com as respetivas equipas, a consciência de que abdicaram de muito na vida para atingirem um nível elevado e a pressão dos resultados alimentaram esta bruma em redor do tema.
Não faltam casos de ciclistas que abandonaram aos 30 anos de idade, quando o instinto maternal começou a despertar, mas também poderíamos listar as ciclistas que estão a adiar este "projeto de vida" porque têm receio de não conseguir um contrato após regressarem da maternidade. Além disso, muitas destas ciclistas que competem nestas equipas profissionais passam muito tempo fora, quer em competição, quer em estágios ou treino. Sem esquecer as inúmeras horas em aeroportos.
A melhor ciclista espanhola de sempre, Joane Somarriba, confessou que viveu um dilema enorme, dado que sentiu o instinto maternal aos 30 anos, precisamente quando estava na melhor fase da sua carreira desportiva. Adiou a maternidade dois anos e depois abandonou para se dedicar a cem por cento à gravidez. A espanhola não queria seguir o mesmo modelo adotado por outras ciclistas - deixar o bebé com os avós - e não se arrepende. "A maternidade deu-me os momentos mais felizes da minha vida". A espanhola teve mais filhos, mas o primeiro é atualmente ciclista na equipa satélite da Kern Pharma.
Na também espanhola Movistar - mas neste caso do escalão WorldTour - há mais dois exemplos de ciclistas que fizeram uma pausa na sua carreira para dar à luz: a francesa Aude Biannic e a cubana Arlenis Sierra. A Lidl-Trek também tem uma política interna de apoio às suas ciclistas que decidem ser mães, continuando a pagar o ordenado. Uma das das ciclistas mais conhecidas da equipa norte-americana é Lizzie Deignan, que se sagrou campeã do mundo antes de ser mãe e após dar à luz participou em provas de elevada dureza como Fléche Wallone e Liége-Bastogne-Liége. A sua colega de equipa Ellen van Dijk também participou nos Jogos Olímpicos de Paris menos de um ano após dar à luz e ficou no pódio da Amstel Gold Race.
Embora não existam muitos artigos que analisem o impacto da gravidez no alto rendimento, os poucos que existem demonstram que existe um efeito fisiológico positivo a médio prazo, tanto no início da gravidez como do parto. Em todo o caso, ainda são necessários mais estudos.
"Recuperei mais rapidamente da gravidez da minha primeira filha do que do meu segundo filho. Na segunda gravidez ganhei mais peso e sentia-me mais cansada. Treinei menos e perdi mais a forma física. Há quem diga que a gravidez de um menino é mais difícil do que a de uma menina e segundo a minha experiência isso é verdade", disse Deignan.
No caso de Van Dijk, os treinadores da equipa adotaram uma estratégia específica:
"À medida que a gravidez ia avançando, fomos reduzindo a intensidade dos treinos e aumentando o trabalho funcional no ginásio com o objetivo de manter uma condição de base saudável e o mais alta possível".
A neerlandesa treinou até dois dias antes de dar à luz, enquanto Deignan treinou até ao quarto dia antes do parto. A francesa Biannic confessou que as águas rebentaram precisamente quando se preparava para montar no rolo para treinar e estes três casos provam que a atividade física teve uma repercussão positiva na qualidade da gravidez.
Obviamente após a gravidez a retenção de líquidos tem impacto no peso, por isso, é preciso ter consciência que o processo de perda de peso terá de ser faseado, pouco a pouco. Além disso, a amamentação condiciona a quantidade de horas que podem ser dedicadas ao treino, como explica a própria Deignan:
"Não podia estar fora de casa mais de 3 horas porque o meu filho dependia de mim para se alimentar. Quando deixei de dar o peito consegui treinar mais tempo e com mais energia".
É importante conciliar estas duas facetas, ou seja, o bem-estar do bebé e o treino, sem pressão. E, acima de tudo, assimilar que está a desempenhar dois papeis, o de mãe e de atleta, sem sentir remorsos quando se está a focar numa coisa em vez da outra, dado que com uma gestão adequada, nada fica para trás.
REGRESSO À ALTA COMPETIÇÃO
Existe uma variabilidade individual quando o tema é o regresso à competição após o parto. Por exemplo, Van Dijk demorou cinco meses e ainda por cima ganhou o contrarrelógio individual da Volta à Extremadura e acabou no sexto lugar da classificação geral. Por sua vez, Deignan demorou sete meses (tanto na primeira gravidez como na segunda). Alguns casos demoram um ano ou mesmo um pouco mais.
"Há um período de exuberância física nas primeiras semanas de treino após o parto. A maioria do stress desaparece, o bem-estar físico e emocional atingem picos e a ciclista sente-se no seu auge. Nesta fase, todos os treinos são corretamente assimilados e há mesmo quem atinja níveis de rendimento superiores aos anteriores. A experiência diz-nos que depois da gravidez é possível voltar a 100%!".
Em suma, a conclusão é que sim, a maternidade é compatível com o desporto de alta competição. A maternidade não causa danos na atleta e inclusive ela pode voltar mais forte, não só física mas também psicologicamente (a experiência de ser mãe proporciona uma alegria difícil de explicar), desde que exista planificação.
Ser mãe não é um estatuto vedado a determinadas mulheres, por isso não faz sentido ter receio. Se a rede de apoio da atleta for forte, se o casal for unido e as equipas estiverem à altura dos acontecimentos, qualquer mulher pode fazer uma pausa na sua carreira desportiva e regressar. E com a colaboração de todos, as exceções podem converter-se na regra.