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Markel Irizar: "Estão a oferecer contratos a juniores que antes eram impensáveis"

O basco, responsável pela equipa satélite da Lidl-Trek, aceitou dar-nos uma entrevista onde aborda o modo como atualmente são contratados os jovens talentos. 

LUIS ORTEGA (CICLORED).

5 minutos

Markel Irizar numa imagen de arquivo. Foto Rafa Gómez (Sprint Cycling Agency)

O ciclismo atingiu um grau de profissionalismo tão elevado que o trabalho de scouting que Markel Irizar fazia para a Lidl-Trek (algo raro na sua alttura), é agora uma realidade em todas as estruturas WorldTour. Por isso, é normal que cada vez mais esses "olheiros" estejam atentos às camadas mais jovens, sendo atualmente uma banalidade contratar ciclistas de tenra idade. 

Irizar reconhece que existe uma espécie de guerra entre as equipas pela contratação dos melhores juniores. "Somos parte do problema. Mas se não for assim, não conseguimos contratar". Por esse motivo, este ano vai ser estreada a equipa continental da Lidl-Trek, para dar espaço a estes ciclistas jovens que ainda não têm maturidade suficiente para correr no WorldTour. 

- Qual é o teu papel na equipa de desenvolvimento da Lidl-Trek?

- A equipa Devo, que é de categoria continental, serve para dar espaço ao scouting que estamos a levar a cabo durante os últimos anos nas camadas inferiores. Estava a ser cada vez mais complicado conseguir atrair jovens ciclistas, porque todos pediam uma equipa onde pudessem correr antes de dar o salto para o WorldTour. Com esta equipa tentamos assegurar os ciclistas do futuro. A minha missão será coordenar tudo. Desde a captação de talentos no escalão júnior e na categoria sub-23 e ver quem pode passar para o WorldTour. A direção estará a cargo do filho de Kim Andersen e o treinador será o Xabier Zabalo. 

Estão a oferecer ordenados, condições e contratos de várias temporadas que antes eram impensáveis

- Por que é tão complicado para uma equipa profissional contratar um ciclista de formação? E não falo só dos juniores, pois sabemos de casos de equipas que contratam corredores no seu último ano de cadete. 

- Isso já me aconteceu e sim, também estamos a falar de cadetes. Acho que tem a ver com o efeito do futebol. O ciclismo está na moda. Entrou muito dinheiro, as estruturas cresceram e tornaram-se mais profissionais. Antes não tínhamos pessoas suficientes para se dedicarem a este trabalho de scouting. Agora, a grande maioria das equipa têm. Tudo isso acelerou muito o processo e é quase uma guerra conseguir contratar os jovens talentos. Estão a oferecer ordenados, condições e contratos de várias temporadas que antes eram impensáveis. Somos parte do problema. Mas se não for assim, não conseguimos contratar.

- Que dados analisas antes de contratar um jovem ciclista? 

- Em primeiro lugar, dados físicos, obviamente. E os resultados. Ver como andam de bicicleta. Por isso é que contratámos o Óscar Saiz, que é um treinador de técnica, e que trabalha em exclusivo connosco. É fundamental, porque na verdade somos uma marca de bicicletas (Trek). A personalidade e o ambiente do ciclista também contam. Se o miúdo for muito rápido, queremos contratá-lo, mas não queremos somente que sejam bons atletas, também queremos que sejam embaixadores das marcas que representam. 

- Mas em toda essa lista de qualidades que procuras num ciclista, em que medida a relação watts/kg conta? 

- É fundamental. Se não tiver watts, não terá resultados. Há muitas variáveis, mas valorizamos sempre a capacidade de evolução e de otimização do ciclista. Ou seja, em que momento se encontra. E a capacidade psicológica para enfrentar tudo o que surge no seu caminho como ciclista profissional. O meu trabalho é ajudá-los e orientá-los nesse caminho rumo à elite do ciclismo profissional. 

- Estes ciclistas que chegam ao profissionalismo tão jovens, que margem de progressão têm nos próximos anos?

- Se me tivesses feito esta entrevista há cinco anos dir-te-ia que o Remco nunca iria andar muito, que o Ayuso iria rebentar no segundo ano e que o Carlos Rodríguez chegou ao WorldTour demasiado cedo. Tenho de engolir aquilo que disse há cinco anos. Estava completamente enganado. O ciclismo está a mudar muito e aquilo que dissermos hoje, não valerá de nada dentro de uns anos. A nível físico, embora pareça estranho, os ciclistas continuam a evoluir. O Ayuso foi levado pelo Matxin quando era júnior e agora é uma estrela. Participou no Giro sub-23 muito jovem e arrasou; no primeiro ano como profissional acabou em terceiro lugar na Vuelta. Eu dizia que estavam a dar-lhe demasiado crédito e olha o que aconteceu. Creio que psicologicamente aguentarão 10 ou 12 anos porque já antes eram muito bons e quando forem mais velhos dirão: agora tenho de fazer o dobro do que quando tinha 18 anos para conseguir o mesmo resultado. E quando atingirem os seus objetivos ficarão satisfeitos e deixarão a modalidade, como fez Peter Sagan, que chegou jovem e se reformou jovem. Casos como o de Valverde, não acredito que se repitam. Ele é uma exceção em tudo. 

- O teu trabalho na equipa de desenvolvimento é dizer aos jovens de 18/20 anos que devem ter calma, pois têm tempo de amadurecer e progredir? 

- Nota que continuo a dirigir a equipa WorldTour, mas serei uma espécie de filtro, vendo que contratações devem ser feitas e quem deve passar para o WorldTour. Depois, será o Luca Guercilena, o Josu Larrazabal e o resto da equipa técnica a tomarem a decisão final. A minha experiência de 17 anos no WorldTour deve servir para delinear um timing adequado para cada um dos jovens. Quero que tenham sucesso na Lidl-Trek, mas se assim não tiver de ser e sairem da equipa, pretendo que quando acabem a sua carreira desportiva possa ir visitá-los, tomar um café e ver que investiram bem o seu dinheiro e estão saudáveis.

- Esse interesse pela formação dos jovens ciclistas como pessoas faz parte da filosofia da Lidl-Trek? 

- Sim, claro. Faz parte da filosofia empresarial. Somos patrocinados por duas famílias. Os donos do Lidl e da Trek são pessoas, não são fundos de investimento, e isso tem muito a ver com a forma de fazer as coisas. É um ambiente familiar que a marca transmite e que é sentido por toda a equipa. Somos uma família e por isso sinto-me responsável. Agora tento diferenciar e quando algum ciclista diz que não quer estar connosco não levo a coisa de modo pessoal. Prefiro terminar uma relação a bem e quem sabe esse ciclista poderá no futuro voltar a estar connosco. Os valores que o Luca Guercilena nos transmitiu estão a ser utilizados. Foi feita uma transição da Trek-Segafredo para a Lidl-Trek. Agora somos maiores e temos mais dinheiro e recursos, mas queremos continuar a ser humildes. Sem renunciar aos objetivos mais altos, mas sem perder a ética. Ganhar sim, mas não a qualquer preço. 

- Os agentes dos ciclistas dificultaram muito o processo de contratação?

- Quando eu era ciclista, havia equipas que não queriam que os ciclistas tivessem agentes. Isso agora é impossível. Fazem o seu trabalho, com alguns tenho uma relação pessoal melhor do que com outros. Há pouco tempo, chegámos a acordo com uma agência para a contratação de um jovem ciclista muito interessante e no mesmo dia alguém nessa mesma agência respondeu-nos que não podíamos avançar. Disse-lhes que tínhamos depositado muita expetativa nessa contratação, mas que temos de estar à altura dos acontecimentos e agradeci o seu trabalho. Lá porque existe um agente a representar um ciclista, não lhe vou oferecer um contrato melhor do que se não o tivesse. Existem regras neste jogo e ética. Por vezes, há quem pense que as equipas só trabalham com um agente e só contratam ciclistas que fazem parte do seu portfólio. Issso nunca vai acontecer connosco. 

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