Competição

De juniores a profissionais: a tendência que está a sufocar o ciclismo

Nos últimos anos, passar de júnior a profissional é cada vez mais normal. No entanto, este trajeto é na maioria das vezes cruel e coloca em perspetiva a importância de manter a categoria sub-23 como garantia de formação para os futuros talentos. 

Álvaro García. Fotos: Sprint Cycling Agency

3 minutos

De juniores a profissionais a tendência que está a sufocar o ciclismo

Vivemos na "era Pogacar", ou seja, no panorama do talento precoce. Muitos ciclistas abandonam prematuramente os estudos, com o objetivo de seguir o sonho de chegar ao escalão profissional, uma moda que foi "importada" de outras modalidades. Mas este paradigma não é órfão, é alimentado por managers e scouts que trabalham nas categorias mais jovens. 

UM SONHO POR VEZES TRANSFORMADO EM PESADELO

Esta transformação do ciclismo moderno está a provocar alterações a montade e a jusante, com o abandono prematuro ao mais alto nível. Há inclusive atletas de topo a descer de categoria para se manterem no pelotão. Se analisarmos a lista de novos ciclistas desde 2021, ou seja, o ano a seguir à pandemia, encontramos valores sempre acima dos 30 corredores (equipas Continentais, ProTeam e WorldTeam). 

E se verificarmos a lista de 2021, vemos claramente que sete dos que subiram de categoria já o tinham feito anteriormente. O ano mais produtivo foi o de 2022, em que surgiram 45 novos ciclistas profissionais, mas poucos subiram de nível nos últimos anos, a maioria abandonou a modalidade ou tiveram de dar um passo atrás. 

Em 2023 e 2024, as equipas começaram a apostar em ciclistas da categoria júnior, colocando-os nas suas equipas satélite. Por um lado passaram a ter melhores condições financeiras e material de topo, mas também mais viagens, um calendário mais longe de casa e por vezes muito reduzido, bem como um ambiente pessoal mais complicado devido à solidão. Lembramos que estamos a falar de miúdos de 18 anos que ainda estão a amadurecer como seres humanos e a aprender o seu ofício. 

Equipas como a Israel Academy, UAE Team Emirates Gen Z, Lidl-Trek Future Racing ou Q36.5 Devo Team são exemplos crassos. Mas será que estamos a dar tempo a estes jovens de evoluir ou estamos a passar por cima de passos importantes no seu crescimento? Não os estamos a massacrar com um regime de treino e competição demasiado duro antes de tempo? São perguntas que ficam no ar, mas que vale a pena ponderar. 

VIVEIROS NAS CATEGORIAS INFERIORES

As próprias equipas juniores começam a converter-se no berço dessas estruturas profissionais e respetivas equipas de desenvolvimento. Um dos exemplos é a equipa espanhola Baqué, que também passa a ter outra estrutura, a Movistar Team Academy. Basta olhar para as equipas ProTeam para ver um cenário diferente.

Se olharmos para a edição de 2024 e 2025 da Volta a Espanha, vemos claramente que as equipas espanholas presentes optaram por convocar alguns dos seus talentos mais jovens. A Kern Pharma levou Urko Berrade (que venceu uma etapa), Pau Miquel (ficou quatro vezes nos cinco primeiros) e Pablo Castrillo (venceu duas etapas); a Euskatel Euskadi levou Xabier Berasategi e Xabier Isasa; a Caja Rural-Seguros RGA apostou em Thomas Silva (duas vezes no top-10), Abel Balderstone e Jaume Guardeño (ambos top-15 na classificação geral); enquanto a Burgos Berpellet BH levou seis ciclistas da sua equipa satélite (Team Cortizo): José Luis Faura, Daniel Cavia, Hugo de la Calle, Sergio Chumil, Eric Fagúndez e Sinuhé Fernández, embora tenham sido afetados por problemas de saúde. 

Todos estes nomes são exemplos de ciclistas que passaram pela categoria sub-23, embora tivessem dado nas vistas como juniores. Esse trabalho de crescimento parece ter o efeito de garantir o progresso da sua carreira: passam a conhecer-se melhor e acumulam a experiência que o profissionalismo requer, sem medo de dar um passo atrás para concluir a sua formação. 

Sempre com o benefício da dúvida, passar diretamente de júnior para profissional parece encaixar mais na filosofia das grandes equipas, com o objetivo de contratar o máximo de talento possível antes dos rivais. Isto sem lhes dar realmente a garantia de que vão continuar no futuro nas suas equipas e com a certeza de que se não mostrarem em pouco tempo o seu valor, têm os dias contados.

Em miúdos de 18 anos, nos quais a maturidade mental para aguentar estar longe da zona de conforto ainda está em crescimento, isto pode ter efeitos nefastos a médio prazo e ninguém parece importar-se com isso. 

 

A LEI DO FUNIL

A soma das equipas WorldTour com os seus plantéis de desenvolvimento em muitos casos supera os 40 ciclistas. Apesar do calendário muito extenso que acabam por cumprir - em teoria, há corridas para todos - a realidade é que, em estruturas mais modestas, parece evidente que esses mesmos ciclistas, obrigados a viver permanentemente entre estágios e provas a milhares de quilómetros de casa, poderiam encontrar uma projeção mais razoável.

Além disso, quando esses ciclistas tentam reconduzir a sua carreira profissional, as restantes equipas têm algum receio em contratá-los, dado que dão sempre prioridade ao talento das suas próprias estruturas. Por isso, em muitos casos, só encontram vagas na categoria sub-23. Talvez a melhor opção fosse aguardar mais um ano, para que o passo seguinte fosse firme e duradouro. Termino com uma analogia: por algum motivo as carnes mais saborosas são as que ficam a cozinhar em lume brando. 

Etiquetas:

Relacionados