Para enquadrar este artigo de opinião, tenho de confessar que acompanho o ciclismo desde 2001, e com carteira profissional de jornalista desde 2005. Tive a sorte de acompanhar grandes competições ao longo destas duas décadas e de estar cara a cara com figuras ilustres da modalidade a nível nacional e internacional durante estes 20 anos. Além disso, como fui diretor da revista Ciclismo a fundo e da BIKE, conheci os bastidores de uma área a que poucos (ou quase nenhuns) jornalistas têm acesso: a indústria e as empresas que organizam as grandes provas.
Rapidamente me apercebi, em 2003, que para "falar a mesma língua" que um Peter Sagan e conhecer os meandros da modalidade, tinha de ser ciclista, treinar o melhor possível (dentro das possibilidades), saber o que é sofrer e perceber o papel de cada um. Assim fiz, treinando, indo a estágios das equipas e falando de igual para igual dos mesmos problemas. Isto faz toda a diferença. Um jornalista, por mais que saiba de história da modalidade, se não pedalar nunca ganhará a confiança de um ciclista nem nunca perceberá as vicissitudes de uma modalidade que é crua, aterradora e tremendamente desumana.
Geralmente só lemos histórias bonitas, atos heróicos, e há também alguns companheiros de profissão que inventam enredos que pura e simplesmente não existem, para apimentar uma reportagem ou uma notícia.
Mas muitas vezes nem é preciso inventar. Basta conhecê-los e todos eles - inclusivé mecânicos, massagistas e soigneurs - têm mil e uma histórias que dariam capa de jornais e revistas.
Afinal de contas, como está o ciclismo em Portugal? Mal! Tremendamente mal! Ninguém quer divulgar números e ninguém assume que a modalidade perdeu investidores, mas essa é a realidade.
Os casos da Maia, Liberty Seguros e mais recentemente W52-FC Porto são apenas a ponta do icebergue. Aquilo que vemos na Volta a Portugal, camiões, autocarros e veículos automóveis cheios de publicidade são tudo menos a realidade pura e dura do estado do ciclismo em Portugal.
Temos ciclistas mal pagos - alguns nem a tempo e horas recebem -, staff desmotivado e patrocinadores a procurar outras paragens. Os poucos portugueses que ainda estão no escalão elite e sub-23 sonham ter uma oportunidade numa equipa espanhola ou, quem sabe, ter a mesma oportunidade que o João Almeida e o Afonso Eulálio (entre outros) tiveram no WorldTour, mas sabem que a visibilidade é pouca.
As equipas lusas, para tentar colmatar a escassez de portugueses com valor, contratam sul-americanos entre outros, que procuram dar um novo fôlego à sua carreira.
Temos mais equipas Continentais do que, por exemplo, os espanhóis. Isto faz algum sentido? Não seria melhor ter três ou quatro, mas com mais orçamento, absorvendo os patrocinadores das estruturas que desaparecessem? Compreendo que há projetos antigos, cimentados, mas cujo único objetivo é ganhar uma etapa na Volta a Portugal. Isto faz sentido? Creio que não. Nada tenho contra as direções das equipas, mas o ciclismo nacional precisa de ser repensado porque, quer queiramos, quer não, a pirâmide está invertida.
Temos mais ciclistas lusos no WorldTour do que nunca, mas não conseguimos captar jovens para as escolas de ciclismo. E os poucos que conseguimos captar raramente passam do escalão de júniores. Será por falta de interesse dos jovens ou por cansaço e falta de visão de quem supervisiona? Ou talvez seja a junção de vários fatores.
A verdade é que os jovens têm cada vez mais distrações e o ciclismo, pelo menos nas idades mais jovens, não pode ser incutido à força nem com planos de treino. Nos países com mais tradição na modalidade, os jovens são ensinados a gostar de pedalar, não para ganhar corridas, mas para terem liberdade. Só quando ganharem gosto por pedalar, e se assim o desejarem, aí sim, perguntam-lhes se querem dar o passo seguinte.
Em Portugal há cadetes com planos de treino irrealistas e que nada têm a ver com a sequência de aprendizagem ensinada lá fora. É normal que acabem por desistir porque em vez de se divertirem estão a ganhar tudo aquilo que queremos evitar: ódio à modalidade.
Se não aceitarmos que de um lote de 100 miúdos, dois ou três terão capacidade para seguir e chegar a sub-23, não estamos a ser sinceros. Poucos terão a capacidade de superação e sofrimento que o ciclismo exige, e isso não tem nada de mal. É uma realidade dura, mas é a que existe.
E no ciclismo luso existe muita paixão, muito amor à modalidade, mas pouca consciência de que temos de inverter a pirâmide, criando uma base larga e sólida, para que um dia possamos colher vários João Almeida, António Morgado, Afonso Eulálio, etc.
Se com pouco fazemos muito, imaginem se tivessemos uma base ampla. O ciclismo sempre viveu da "carolice", é algo que sempre resultou, mas se olharmos para o que temos, é uma mão cheia de quase nada.
Ao reduzirmos o número de equipas, mas assegurando que têm mais capacidade financeira, poderemos absorver os melhores sub-23 e elites nacionais. Isto também obrigará os organizadores da Volta a Portugal a procurar mais equipas para colmatar o lote mínimo. Convidar equipas satélite é uma opção a ter em conta, até porque trazem sub-23 de grande nível, aumentando a qualidade da prova.
E quanto à mudança da data da Volta a Portugal? Este tema já foi abordado várias vezes e a resposta é complicada, pelo menos nos moldes em que a prova foi formada. Uma prova sem público não existe e até agora a organização apostou neste modelo - Agosto - para aproveitar a chegada dos emigrantes e as férias de quase metade dos portugueses. Todavia, metade dos lusos vai para o Algarve de férias e, como todos sabemos, a Volta não tem passado pelo sul do país.
Quanto ao modelo económico da Volta é alicerçado em patrocinadores padrão (grandes empresas nacionais) e metade do investimento vem das Câmaras Municipais por onde passa a prova. É difícil adivinhar se essas mesmas marcas não se importariam de continuar a apoiar a prova se esta mudasse para outra data, eventualmente para conseguir convidar equipas com outro estatuto. Mas como esses acordos comerciais envolvem ativações de marca nas partidas e chegadas, será que não estariam às moscas, sobretudo nos dias de semana?
Não há - infelizmente - muitos patrocinadores com capacidade financeira no nosso país, portanto a Podium tem batido à porta de todos os que têm dimensão. E se fosse mudada a data e a Volta a Portugal perdesse um terço do investimento? Que consequências teria? Confesso que não conheços os números atuais, mas arrisco dizer que seria catrastófico, até porque a Podium é obrigada a organizar outras provas - dentro do contrato-programa assinado com a FPC - e não acredito que as restantes tenham lucro. Nem sequer break even. Mas e se com um novo modelo de negócio o investimento crescesse?
Quanto às Câmaras Municipais, a verdade é que em Agosto proliferam as festas para os seus emigrantes e capitalizam - as que têm capacidade financeira para tal - a presença da Volta para ganhar mediatismo e sobressair politicamente.
A Volta a Portugal - embora poucos saibam disto - é uma prova com um estatuto especial. Existem apenas três grandes voltas com três semanas de duração (Giro, Tour e Vuelta) e várias provas de uma semana, mas a "Grandíssima", devido à tenacidade da então direção da FPC, conseguiu manter os 11 dias de prova, algo que nos deve encher de orgulho.
Não seria melhor também repensar o modelo da Volta, "vendendo" o conceito ao Turismo de Portugal - com patrocinadores satélite, obviamente - aumentando também o investimento na prova, no retorno e na capacidade de atrair equipas ProTeam e, quem sabe WorldTour? Não me choca se isso obrigasse a reduzir o número de dias e alterando a data, mas seria um salto qualitativo importante. Isto poderia ser complementado com transmissão televisiva internacional - se de facto a qualidade de ciclistas presentes aumentar - que é aquilo que outros países já fazem.
A Volta no modelo atual, por muito que nos custe, está a perder gás e é necessário repensar antes que seja tarde. E tu, concordas ou discordas? Comenta este artigo, porque a opinião de todos conta.