A vida de ciclista profissional é inglória. As longas estadias fora de casa, longe da zona de conforto, com inúmeras horas passadas em aeroportos, quartos de hotel (todos pensam que os ciclistas do World Tour dormem em quartos de luxo, mas isso é um mito), em transferes morosos, entre corridas a um ritmo demoníaco, são tudo menos uma vida de sonho.
Fabio Aru abandonou o ciclismo e está a atravessar uma nova fase na sua vida. Já há algumas semanas que acorda e ao seu lado tem a companhia da sua esposa, Valentina. Ter a presença dela acalma-o, alivia-o. Nem os berros da sua pequena filha de dois anos, Ginevra, a meio da noite, com pesadelos, o incomodam. São prazeres únicos na vida, coisas simples que um ciclista aprende a apreciar, depois de anos e anos num vai e vem constante em que as malas e o passaporte são o denominador comum. Para um fã de ciclismo pode ser difícil de compreender, pois só conhecem a imagem do ciclista, mas a de um pai e marido, está sempre coberta por uma nuvem... e por um dorsal.
Na sua casa, em Lugano (Suíça) - um local fantástico para se viver, diga-se de passagem -, o Fabio é feliz. Encontrou a paz de espírito que precisava e, sobretudo, consegue agora ter tempo para a sua família. Continua a manter a forma física, quer dando as suas voltas de bicicleta, quer correndo, mas o objetivo é única e exclusivamente manter a forma. Nos últimos anos, a pressão de conseguir resultados fez com que passasse noites sem dormir. Mas tudo mudou. Apesar de ter recebido ofertas de outras equipas para continuar, os seus objetivos são outros.
Muitos não sabem, mas o Fabio começou no BTT. Aliás, ele chegou a pedir um autógrafo a Julien Absalon, o seu ídolo, o qual guarda com muito carinho. Na sua casa centenas de fotografias do seu passado deixam a descoberto a sua paixão pelo ar livre.
A sua destreza em cima da bicicleta fez com que o ciclismo e o destino se unissem. Os seus resultados - ainda na categoria amadora - suscitaram o interesse da Astana, que o recrutou em 2012. O seu primeiro encontro com a equipa cazaque decorreu num estágio em Calpe, no mês de Dezembro. A sua timidez fazia com que falasse baixinho e a sua cultura e educação recomendavam respeito pelos mais veteranos. Lembra-se perfeitamente de um facto curioso, a forma com que Vinokourov apertava com os seus companheiros nos treinos.
Da Astana trouxe boas lembranças, como os ensinamentos do seu colega Paolo Tiralongo, um ciclista sorridente que sempre lhe recomendou paciência e ponderação. Foi ele que o ensinou a treinar em altura, a colocar-se no pelotão e a proteger-se.
Sempre aceitou estar ao serviço dos grandes líderes, como Vincenzo Nibali e Michele Scarponi. Nibali era um campeão, Michele era especial. A sua morte foi aterradora, inesperada e Aru faz questão de lembrar que o malogrado ciclista lhe ensinou que quer as coisas corram bem, quer corram mal, um chefe de fila deve sempre agradecer aos seus gregários.
Poucos anos depois, chegou o seu momento, passando a ser líder. Em 2014, a Volta a Itália foi o palco de um dos momentos mais altos da sua carreira. No ano seguinte, o Giro teve uma das batalhas mais épicas de que tem memória, no seu duelo com Alberto Contador. O espanhol viria a confessar mais tarde que o italiano o fez sofrer de uma forma brutal no Giro desse ano. Fabio agradeceu os elogios, mas reconheceu que também sofreu muito, sobretudo porque nessa fase a saúde já lhe estava a pregar algumas partidas.
No entanto, a sua grande exibição chegou uns meses mais tarde, durante a disputa da Volta a Espanha. Vincenzo Nibali foi desclassificado numa das etapas iniciais por se agarrar a uma viatura da equipa após ter estado envolvido numa queda. A partir daquele momento, o seu objetivo na prova mudou. A equipa pediu-lhe de imediato que liderasse e em cada etapa tentou deixar para trás Tom Dumoulin, mas o holandês respondeu sempre à altura. Nunca acreditou na vitória, até chegar a penúltima etapa... Em plena serra madrilena, com dois homens em fuga, ele e Mikel Landa atacaram na última subida. Quando Dumoulin descaiu, os seus colegas que estavam em fuga esperaram por Aru. No auricular do rádio, o italiano ouvia incessantemente os berros do seu diretor desportivo: "Ele está a ceder! Ele está a ceder!" No dia seguinte, o italiano finalmente subiu ao lugar mais alto do pódio em Madrid.
Foram dias de glória, de elogios. Mas o ciclismo, na sua versão mais cruel, estava prestes a bater à sua porta.
Em 2018, o Fabio decidiu mudar de equipa e assinou pela UAE Emirates. A contratação fez com que a equipa dos Emirados ganhasse outro respeito, outro nível e o objetivo era bem conhecido de todos: ganhar provas de alto nível.
No entanto, as coisas não correram bem assim. Os resultados não apareciam, as lesões apoquentavam-no e os tiffosi aumentaram a pressão. A lesão mais grave, um problema numa artéria da sua perna, foi detetada apenas um ano após os primeiros sintomas, o que fez com que estivesse em baixo de forma durante dois anos. A ansiedade começou a apoderar-se dele e, confessou mais tarde, durante esses dois anos passou muitas noites sem dormir, com uma depressão.
Mas teve de se resignar e ser paciente. Decidiu dar outra oportunidade ao ciclismo e aceitou uma proposta da Qhubeka, uma equipa onde o valor humano está acima de tudo. Mesmo assim, apesar de ter estado em grande nível na Volta a Burgos, continuava a sentir-se vazio.
"Valentina, ouviste-me muitas vezes a queixar. Esta é a última. Após a Volta a Espanha, tudo vai acabar. Quero recuperar o tempo perdido convosco", disse-lhe uma noite. Ele cumpriu a sua palavra. Primeiro falou com a equipa, semanas depois espalhou a notícia. Foi nessa altura que a Qhubeka lhe ofereceu o melhor presente.
Após a última etapa da Volta a Espanha - o contrarrelógio que terminou em Compostela - todo o staff e os restantes companheiros esperaram na mesma linha de meta que o Fabio terminasse. Quando chegou, abraçaram-se todos, visivelmente emocionados.
Meses depois, aos 31 anos, tudo não passa agora de uma recordação. Muitos provavelmente não vão perceber os motivos que o levam a abandonar o ciclismo, mas a Valentina sabe. Só a Valentina é que conhece o verdadeiro Fabio, um homem, marido, pai de família, ser humano, frágil, humilde, sofredor. O ciclismo deu-lhe muito, mas também lhe retirou algo na mesma proporção. Do ciclismo leva recordações, da vida... a humildade.