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Como está a ser feito o combate à dopagem em Portugal

Entrevistámos António Júlio Nunes, Diretor Executivo da Autoridade Antidopagem de Portugal e ficámos a conhecer melhor como está a ser feito o combate ao doping no nosso país, por que motivo o ciclismo tem tantos casos positivos e como está a ser preparado o futuro.

Carlos Pinto. Fotos: Luís Duarte

11 minutos

Como está a ser feito o combate à dopagem em Portugal

Muitos desconhecem, mas atualmente a ADOP (Autoridade Antidopagem de Portugal) e o Laboratório que recebe e analisa as amostras recolhidas são totalmente independentes e separados fisicamente. O objetivo é garantir o cumprimento de regras internacionais, a separação total de poderes, a autonomia e proporcionar mais transparência. Além disso, a legislação nacional foi adaptada àquilo que é a realidade do novo Código Mundial Antidopagem.

Atualmente, existem três entidades da antidopagem no nosso país. A primeira, é a ADOP, que é a única com responsabilidade de planear e executar o controlo da dopagem a nível nacional, embora outras entidades estrangeiras possam vir a Portugal fazer o controlo de dopagem.

A segunda são os Laboratórios acreditados pela Agência Mundial Antidopagem, e o nosso país tem um dos 29 a nível mundial. Durante um período este laboratório situado em Lisboa esteve sem acreditação e as amostras foram enviadas para laboratórios fora do país. Em 2022 o laboratório nacional recebeu novamente a acreditação e passou a depender de um organismo do Estado que nada tem a ver com o desporto, o Instituto Ricardo Jorge (embora numa primeira fase dependesse do IPDJ). Portanto, atualmente as amostras recolhidas pela ADOP são enviadas para o laboratório nacional.

 

A terceira entidade é o Colégio Disciplinar Antidopagem, um organismo autónomo constituído por sete pessoas – cinco juristas ou advogados e duas pessoas licenciadas, mas sem ser na área do Direito, neste caso um Médico e uma ex-atleta olímpica -.  Este colégio funciona quando há um caso adverso (antigamente chamava-se caso positivo), e nesse âmbito a ADOP faz a instrução do processo disciplinar com uma proposta de decisão. É nomeada uma subcomissão de dois juristas e um não jurista que decide se a proposta de sanção é adequada ou não, sendo possível rever os dados, arquivar o processo, ouvir novamente o atleta ou os dirigentes. E existe sempre a possibilidade de recurso por parte do atleta ou da ADOP.

Entrevistámos António Júlio Nunes, Diretor Executivo da ADOP, de modo a analisar o trabalho desta entidade estatal.

Quem toma a decisão relativamente aos testes antidopagem? É a ADOP que escolhe os atletas que vai controlar?
Apesar de as Federações poderem solicitar controlos em certos eventos desportivos, é sempre a ADOP que decide que tipo de controlos de dopagem faz, em que eventos e que atletas são controlados. Atualmente, os controlos fora de competição são muito importantes.
 
Porquê?
Porque há um conhecimento da dopagem, dos períodos de retenção e os atletas que infelizmente recorrem à dopagem têm a noção de que uma substância está “x” horas ou dias no organismo e que ao fim de determinado tempo é excretada do seu organismo. Logo, quando chegam à competição já não têm a substância no organismo, mas sim o seu benefício desportivo. Cada vez mais temos de os controlar fora de competição e a forma como os controlamos pode ser aleatória ou direcionada.
 

 

Um ciclista estrangeiro, mas a residir em Portugal é controlado pela ADOP?
Sim. Temos legalidade para controlar qualquer atleta que esteja em território nacional, independentemente da nacionalidade. O nosso país é muito procurado por atletas internacionais para fazer estágios e podemos controlar qualquer um. Trabalhamos em rede através de uma plataforma internacional em que monitorizamos os atletas e existe um grupo alvo que tem obrigatoriamente de dizer onde está 60 minutos por dia entre as 6h e as 23h. Quando um atleta português vai para o estrangeiro, enviamos a localização aos nossos colegas e ele é controlado nesse país.
 
Quantas modalidades é que a ADOP controla?
Temos legalidade para controlar todos os atletas federados numa federação com utilidade pública desportiva. Atualmente em Portugal são 60 Federações.
 
Há quem considere que todos os ciclistas andam dopados. Isto faz algum sentido?
Eu não acho que todos os ciclistas andam dopados, muito pelo contrário. Há uma pequena percentagem de ciclistas que percorrem o caminho mais fácil, através de substâncias e métodos proibidos e é esse pequeno grupo que põe tudo em causa. Não vou dizer que o ciclismo não tenha um fator de risco elevado, porque tem, mas dizer que todos os ciclistas tomam doping, não acredito nisso. É por isso mesmo que a monitorização está a ser realizada e evidentemente alguns ciclistas acabam por cair em violações.
 
Como são avaliados os critérios de risco das diferentes modalidades?
Nós fazemos avaliações de risco que têm 20 ou 30 critérios e que podem ir desde a importância do evento desportivo, o aspeto financeiro que está em jogo nesse evento, que tipo de modalidade, exigência física dessa modalidade, que tipo de substâncias estão associadas a essa modalidade, etc. Os fatores de risco do ciclismo mudam de disciplina para disciplina. Existem três grupos de risco: alto, médio e baixo. Obviamente as modalidades com fatores de risco elevado são mais controladas do que as de risco baixo.
 
 

 

Como é que um atleta pode saber se um determinado medicamento receitado por um médico pode ou não ser proibido?
Nós temos um motor de busca no nosso site, que é o Informa-te, que pode ser acedido por qualquer pessoa e saber se aquele medicamente é proibido ou não na modalidade em causa.
 
O que é que leva um atleta a dopar-se?
A decisão de tomar ou não uma substância proibida tem a ver com a formação, com a educação, com os valores que lhe foram transmitidos, quer seja pelos treinadores, pelos pais, pelos colegas. É por isso que o trabalho da ADOP na educação e na formação de todos os agentes é importante.
 
Tendo em conta a sua experiência ao longo destes anos, já conseguiu perceber qual é o perfil psicológico de quem se dopa?
É difícil… Eu costumo dizer que dois atletas que praticam a mesma modalidade e tomam a mesma substância proibida, muito provavelmente o fazem por motivos diferentes. Há atletas que tomam porque querem chegar rapidamente ao alto rendimento e ter resultados desportivos, patrocínios ou visibilidade. Há outros que tomam para terem um contrato melhor e fugirem de uma vida difícil ou para levarem mais dinheiro para a sua família. As motivações podem ser muito diferentes. Há também casos de atletas que são apanhados no doping e que nem sequer perceberam porque é que foram apanhados. O atleta poderá estar automedicado sem ter tido o apoio de um médico ou o médico que prescreveu esse medicamento poderá não estar informado que esse produto é proibido, induzindo o ciclista em erro. Ou eventualmente o atleta pode ter tomado um suplemento contaminado, mas existe uma coisa chamada responsabilidade objetiva do atleta.
 
Ou seja?
Se a colheita da amostra é feita ao atleta, o atleta é sempre responsável por aquilo que é introduzido no seu corpo. Daí a importância de o atleta questionar o que é que lhe está a ser dado. Mas nós sabemos que no desporto muitas vezes isso não acontece. E muitas vezes o atleta sabe o que está a fazer, mas é o elo mais fraco e não quer denunciar quem lhe forneceu a substância.
 
 

 

Existe uma ideia generalizada de que o ciclismo é muito mais controlado do que outras modalidades. Isto é verdade ou não passa de um mito?
Não vou contrariar a ideia de que o ciclismo é a modalidade mais controlada em todo o mundo, mas é também aquela infelizmente onde há mais casos positivos. Mas não concordo quando dizem que há mais casos positivos porque é mais controlada do que as outras. Pelo menos a realidade em Portugal não é assim. O futebol está no grupo de risco alto por ter um elevado número de atletas federados, entre outros critérios, e se compararmos o número de controlos no futebol com os do ciclismo andam lado a lado. Em todas as jornadas de futebol são controladas seis equipas no mínimo.  
 
Como foi feita a gestão dos controlos antidoping na Volta a Portugal?
Controlámos no final de cada etapa os primeiros lugares, o camisola amarela e outros aleatoriamente, mas a maioria desses controlos foi feita à noite ou de manhã nos hotéis onde esses atletas estavam a pernoitar.
 
E nas provas amadoras com grande participação, como os Granfondos e as Maratonas? A ADOP marca presença nestes eventos?
(…) É evidente que existe uma escolha que tem de ser feita tendo em conta os recursos da ADOP. Estamos presentes em alguns Granfondos, embora não seja o foco da ADOP nem de nenhuma outra autoridade antidopagem de outro país.
 
 

 

A implementação do Passaporte Biológico está a correr bem?
Sim, tem corrido muito bem. No fundo, o Passaporte Biológico é uma análise indireta ao atleta. Através dele analisamos o perfil hematológico ou historial do atleta ao longo da sua carreira desportiva. Sempre que existem oscilações do seu perfil hematológico, – com probabilidade de 99,92% - com pareceres concordantes de três peritos, podemos avançar para um processo disciplinar. O atleta tem o poder de se justificar. Se comprovar, está justificado. Caso não o faça, aquela alteração não poderia ter acontecido no seu organismo sem ter havido uma autotransfusão. Neste caso percebemos que há dopagem sanguínea. Sempre que um atleta toma um medicamento ou uma substância proibida, o corpo tende a adaptar-se e provoca alterações. Portanto, hoje é muito difícil estando o atleta inserido no passaporte biológico, ter o seu perfil completamente linear se tomar substâncias proibidas. Em 2023 inserimos no nosso Passaporte Biológico todos os ciclistas que estão nas equipas nacionais.
 
Como funcionam as chamadas amostras de longa duração?
Hoje quando fazemos o controlo num atleta, e se o atleta der negativo, se essa amostra for colocada dentro do lote das amostras de longa duração, podem ser reanalisadas até 10 anos. Ou seja, algumas amostras são escolhidas tendo em conta fatores como recordes nacionais, eventos internacionais e mesmo amostras em que exista alguma desconfiança mediante a avaliação de risco daquele atleta. Mesmo que a amostra inicial tenha dado negativo. Sempre que se faz uma reanálise é preciso ter como base a lista de substâncias e métodos proibidos que estava em vigor à data da colheita da amostra.
 
 

 

Um atleta apanhado nas malhas do doping fica sempre com uma reputação terrível…
Um atleta de alto rendimento que fique parado três ou quatro anos fica com a carreira destruída. Além disso, o doping marca o atleta para sempre. O atleta falha, depois é sancionado, cumpre a sua sanção e regressa à sua atividade porque tem o direito de o fazer. Mas a maior parte dos atletas ao fim de um ou dois anos abandona porque não consegue ter os resultados que tinha e pelos olhares de terceiros. Vai sempre ser visto como um atleta que foi dopado.
 
Existe alguma tendência atual em termos de métodos ou substâncias?
Isto é muito dinâmico. Eu costumo dizer que é a luta entre o gato e o rato, mas o rato aqui é um pouco maior do que o gato. Infelizmente o aparecimento de novas substâncias é elevado e existem pessoas com grandes conhecimentos científicos que optam por estar do lado da dopagem, colocando em risco a saúde e a vida dos próprios atletas. Muitas vezes é difícil perceber na presente data o que é que estão a usar. Por isso, todos os anos, no dia 1 de Janeiro entra em vigor uma nova lista de substâncias proibidas. Falar de sanções é fácil, mas explicar a jovens saudáveis que estão no auge da sua vida, que tomar substâncias de forma reiterada pode provocar danos na sua saúde aos 25, 30 ou 35 anos, nem sempre é fácil. Aos 20 anos ninguém acha que vai ficar doente.
 
 

 

Que consequências, em termos de saúde, pode sofrer um atleta que se dopa?
O alto rendimento não significa saúde, e se a isso juntarmos substâncias que ainda obrigam o organismo a andar a uma velocidade maior, é evidente que se existir a probabilidade de algum dano, como um AVC, isso é multiplicado exponencialmente. No caso do Lance Armstrong, provavelmente o cancro testicular aos 21 anos, em vez de ser aos 40 ou 50, deveu-se à dose de substâncias proibidas, testosterona e medicamentos de uso veterinário que tomava na altura.
 
O desporto continua a ter bons valores, muitas vezes são as próprias pessoas que os destorcem…
O desporto tem a capacidade de dar uma oportunidade a qualquer jovem. Aquilo que me motiva todos os dias é a sensação de contribuir para a proteção do desporto. O desporto faz hoje pelas crianças aquilo que fez comigo nos anos 80. Tirou-me do maior bairro clandestino da Europa e deu-me uma oportunidade de sair daquele bairro todos os dias às 6h da tarde. O facto de estarmos aqui a falar tem a ver com o desporto e com essa oportunidade que o desporto me deu. Quem gosta de desporto, precisa de sentir que é verdadeiro e real. Eu aprendi a gostar de ciclismo e atualmente é das minhas modalidades preferidas.
 
O que é que mais aprecia no ciclismo?
O ciclismo é o único desporto que vai à casa das pessoas, àquela aldeia, àquele local onde durante um ano ninguém passa. As pessoas estão na rua à espera de ver um pelotão passar em dez segundos e muitas vezes essas pessoas estão em pleno agosto, ao sol, durante 2, 3 ou 4 horas para ter um lugar à beira da estrada… Não vejo nenhum desporto que consiga ter essa capacidade a não ser o ciclismo. Daí a importância de nós termos tido um projeto especial de recuperação daquilo que é a imagem do ciclismo em 2023.
 
 

 

Ficou surpreendido com o que encontrou no caso da W52/FC Porto?
Convém esclarecer que o procedimento que foi adotado na W52/FC Porto seria exatamente o mesmo se fosse outra equipa. Aquilo que aconteceu foi no âmbito de uma investigação em que a ADOP esteve em estreita colaboração com a Polícia Judiciária. A ADOP fez a sua parte e a Polícia fez a parte que tinha de fazer. Não havia partilha dessa informação. Se me pergunta se fiquei surpreendido com o que vi nos quartos dos ciclistas e que está como prova no processo que é público, não estava à espera. Não foi um dia feliz para o desporto nem para a ADOP. Foi um dia difícil.
 
Sofreu ameaças de morte?
Não fui só eu. O Presidente da ADOP também recebeu. Tivemos o apoio por parte da Polícia, mas em momento algum a ADOP se desviou daquilo que era a obrigação e a competência no âmbito deste processo. Sinal disso foram as sanções aplicadas aos atletas no final do processo.
 
Em que modalidades está presente o Passaporte Biológico para além, claro, do ciclismo?
Está presente no futebol, no triatlo, no atletismo, canoagem, entre outras.
 
Como é que está a ser preparado o futuro no combate à dopagem?
 
Estamos a reforçar a nossa equipa. Hoje cerca de 20% das pessoas que trabalham na Agência Antidopagem estão na área da Investigação. Está também a ser feito um trabalho muito grande na área da formação e educação. Há mais de 720.000 atletas federados e estamos a fazer ações de formação para que depois esses dados sejam partilhados em cascata. Formamos treinadores, dirigentes, atletas, fisioterapeutas e médicos. Fizemos ações para mais de 30.000 agentes desportivos no último ano. Também estamos a partilhar informação com a Polícia. Estamos a trabalhar com novas tecnologias, e em novos projetos, nomeadamente na área do doping genético, acompanhando as tendências e a evolução.
 

 

Que mensagem gostaria de transmitir a quem lê esta entrevista?
A maior proteção que o ciclismo pode ter é proporcionada pelos seus intervenientes. A ADOP vai estar sempre presente nos controlos de dopagem, e se a sua presença gerar casos positivos, a ADOP, naturalmente, tem de fazer o seu trabalho. A ADOP não mede a qualidade do seu trabalho pelo número de casos positivos. Aquilo que infelizmente aconteceu em 2022 no ciclismo em Portugal, que foi o maior escândalo de dopagem a nível mundial, deitou por terra aquilo que era a história do nosso ciclismo. Felizmente em 2023, houve alterações e os ciclistas, diretores e restantes pessoas ligadas à modalidade perceberam que o caminho não era aquele. O futuro do ciclismo está nas mãos das pessoas que estão na modalidade. Se essas pessoas o protegerem e tornarem verdadeiro e íntegro, naturalmente terão mais visibilidade, terão uma competição mais leal, mais verdadeira e mais fãs. Terão também mais pais a quererem que os seus filhos pratiquem essa modalidade. A integridade do desporto é importante para a decisão de um pai.

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